22 de jun. de 2009

Enquanto isso, no playground sem número...

EM UM FIM DE TARDE particularmente bonito, o aprendiz de anjo dividia a gangorra com o pequeno aspirante a Lúcifer. O playground do inusitado encontro - até para evitar qualquer tipo de influência geográfica - era um cemitério terreno, daqueles repletos de flores e árvores e lagos e pássaros, combinação que deixava às tumbas o papel de meras coadjuvantes.

O assunto do dia era a passagem prematura de uma linda menina carioca, nocauteada pelo câncer após lutar dezenas de rounds com serenidade e desenvoltura dignas das maiores lendas do boxe.

Após uma pequena pausa na discussão e aproveitando o impulso providenciado pela batida do pé angelical no chão, o menino de olhos azuis falou:

- Papai me disse que esteve com ela nas últimas noites que passou por aqui. Assim como faz com todas as pessoas que lhe dão orgulho, concedeu à menina 2 desejos. Ela pediu um tempo para pensar melhor no outro, mas foi logo entregando sua primeira vontade: viajar!

- Garota esperta!

- Enquanto seu corpo repousava, eles foram esquiar em Aspen, passearam de gôndola em Veneza, tomaram sorvete admirando a torre Eiffel e fecharam com chave de ouro na Disney. Fiquei até meio enciumado, sabe... Ele nunca me levou na Disney!

- Nem o meu... Fui uma vez no Beto Carreiro e olhe lá!

Com aquela risadinha de canto de boca que fica na linha tênue que separa a alegria genuína do sarcasmo de família, o garotinho de rabo coçou os chifrinhos protuberantes e resolveu confidenciar ao amigo alado o que o pai lhe contara na noite anterior:

- Sabe, meu pai também esteve com ela. Conversaram por horas a fio, e depois de rirem até faltar ar das histórias e peraltices dela, ele lhe concedeu um desejo também. É o que anda fazendo com todos que vivem intensamente a vida daqui.

- Ah, eu aposto que ela pediu para ver o jogo do Santos!!!

- Que nada, mané. Papai até chegou a oferecer um tour infernal VIP, mas ela recusou educadamente e disse que estava de saco cheio de ficar deitada. Ela queria dançar! Em questão de segundos ela deixou seu corpo na cama, levantou com penteado e vestido estonteantes e teve uma noite de Ivete Sangalo: dançou samba, pagode, funk, valsa, tango... até na lambada a danada arrasou, acredita?

- Deus é pai!

- Pois é, rapaz. Mas me diga lá... E o último desejo dela, qual foi afinal?

Na descida da gangorra, o anjinho encolheu as asas e apoiou os dois pés no chão, deixando o rabo do amigo suspenso no ar. Assim como fazem seus iguais, olhou nos olhos do parceiro de gangorra com aquele misto de bondade e perspicácia que só mesmo os olhos azuis conseguem proporcionar.

- Ela pediu... Pediu para ele dizer aos pais dela (nos sonhos, para não assustar) que nada do que fizeram foi em vão. Que a luta, a garra e a fé deles devem seguir intactas, pois é através delas que eles a reconhecerão em diversos momentos de suas vidas. Aproveitou também para avisar os amigos que aproveitem seu tempo aqui até o último grão da ampulheta, porque a partir de agora eles terão mais uma pessoa lá em cima zelando por eles. E pediu, momentos antes de partir, para todos que a amavam não culparem o papai pelos momentos de dor que teve aqui.

O anjinho então segurou seu lado da gangorra para o amigo planar sem turbulências, e com um movimento gracioso abandonou o brinquedo. Se espreguiçou com vontade, abriu as asas amarrotadas e caminhou até o compensado de concreto ali adiante. Parou ao lado das coroas de flores recém-renovadas e passou a esquadrinhar a lápide, pensativo.

Seu colega underground se aproximou, colocou a mão no ombro do amigo e perguntou, enquanto se divertia com as cócegas que a palavra 'jaz' faz na língua, ainda que lida mentalmente.

- E será que eles vão entender?

- Olha, rezo todos os dias para que isso aconteça. Mas isso só eles poderão responder.





8 comentários:

Marion Jones disse...

Vamos sentir sua falta Julinha... Fica com Deus!

Mariana Baldin disse...

Que texto lindo! Emocionante... parabéns.

Nathy disse...

boa!! mandou muito bem Renats ;)

mari abdo disse...

Re,
só uma pessoa como vc para falar da morte (e do câncer) com essa leveza e ainda não me fazer chorar e sim rir. Não é a primeira vez que vc consegue me fazer rir de coisas que eu jurava que ia chorar.
Amei o texto!
Vou mostrar para os meus pais e pensar que o último desejo do meu irmão tbm foi esse... e tentar seguí-lo (depois de 16 anos ainda culpo, às vezes, o "papai" do seu anjinho)

Anônimo disse...

Venho escrevendo textos ha anos e tenho certeza que não conseguiria reproduzir uma quantidade enorme de sentimentos dessa forma bacana.
Foi uma homenagem fantástica que voce preparou para a nossa prima!
Li um livro entitulado "Por que coisas ruins acontecem com pessoas boas" e a verdade é que a resposta está dentro de cada um de nós.
Aquele sorrisinho maroto de garota sapeca é que ficou marcado e lembraremos dela sempre, com muito carinho.
Parabens pelo texto! Tenho certeza que a família toda está emocionada!

Tio Edwin disse...

Me emocionei ao ler as palavras de seu coracao, as que nao escritas por uma pena, lapis ou caneta, mas escritas com sentimento e compreensao do momento tão dificil para pais dedicados e que amam sua filha pela eternidade.

Parabens, la na companhia do anjinho do bem ela deve ter ficado feliz com suas tao gentis palavras!

Ana disse...

Falar sobre a morte, seja através de textos, seja através de conversas que pouco confortam é tarefa árdua. É difícil alguém conseguir expressar algo relevante num momento como esse, até porque nossa cultura não é preparada pra aceitar a figura de foice em punho com serenidade.

E isso se torna muito mais complexo quando ocorre de forma prematura. Para os pais é algo visceral, cronológico: você não está aqui para ver seus filhos morrerem. É inaceitável que isso aconteça antes da sua morte! E quando vem na forma de uma doença que traz momentos de sofrimento quase insuportáveis... É realmente inevitável questionar a existência divina.

Mas não sei: tenho a impressão que quanto mais nego o tal "cara gozador" [/chico buarque] parece-me que ele insiste em desperdiçar o tempo tentando provar o contrário, justo pra mim. Vai entender?

E, na maioria das vezes, bons textos são aqueles escritos com o coração, a alma e todos os outros clichês. Esse foi um deles, na minha opinião.

Stella disse...

Muito lindo o texto. Expressa exatamente o que sentimos, e exatamente a imagem que guardamos dela como uma menina alegre, cheia de vida e solidária até no momento mais dificil por ela vivido.

Espero que esteja num lugar lindo, amparada por anjos e arcanjos e de lá dê muita força para os pais, irmãos, familiares e amigos que aqui deixou e que sentirão muitas saudades.

Beijão!

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